Da Leveza e do Silêncio

Rute Rosas, Porto, Março 2017

 

Adoro existir… mas também não sei o que será não existir.

Motiva-me pensar que o que faço e o que construo pode modificar alguém, deixando-lhe um registo na memória ou reativando recordações, momentos e experiências vividas noutro contexto e de uma outra forma, num reencontro com o escondido, que sempre esteve próximo sem que tivesse sido exaltado ou enaltecido.

Num entrelaçamento do Tempo com o Espaço, entre o tangível e o visível, entrando e saindo simultaneamente de mim, prossigo na descoberta de outros tempos e espaços, onde cada um poderá encontrar os seus, elegendo-os.

Partindo do princípio de que existem diversos tipos de Memória e que estes podem estar ou não associados à experiência vivida por cada um de nós, a experiência de Recordar será distinta. Dois exemplos ilustrativos: O que recordo da 2ª Guerra Mundial? Não é possível que tenha ocorrido comigo qualquer dado neste período, mas guardo na minha memória o que retive do que aprendi, li ou ouvi, e tenho a capacidade de trazer estes dados para o momento presente.

Por outro lado, se evocar um aroma, dizendo: “cheira a pão acabado de sair do forno”, o processo será diferente. A nossa memória retém este aroma e até poderemos por momentos sentir um cheiro e visualizar um episódio vivido, mas cada um de nós, o recordará de forma distinta e individual, seja este mais presente ou mais distante.

Quando recordamos alguma coisa, quando tornamos explícito o que estava implícito, modificamo-nos emocionalmente e também a própria coisa. Cada vez que ativamos uma recordação construímos uma reformulação da mesma, pelo que podemos falar de re-recordação, ou recordação da recordação, sucessivamente distintas. Ativar a memória e as recordações parece ser similar ao processo do acordar de um estado de adormecimento.

Os processos de criação não permitirão uma perspetiva cronológica do tempo no sentido narrativo, mas não se podem identificar como completas abstrações. A memória criadora (BERGSON, Henri, 1939), pelas suas singularidades processuais, e a capacidade para recordar, atestam a riqueza nas possibilidades que nos oferecem de reinventar a existência. Através da memória - que armazena e é contaminada -, da sua constante atualização pelo que é vivido – num vaivém entre os diversos passados da experiência vivencial –, e da Imaginação, revisitamos espaços, objetos, recriamos conceitos, fazemos conexões entre os sentidos.

Assim, o saber racional e a invenção poética não são essencialmente excludentes. Opostos em determinadas instâncias, culminam ambos no momento da imaginação criadora.

Pressupondo que o conhecimento disposicional para recordar é imprescindível, começo, em primeiro lugar, por me confrontar comigo própria, com aquilo que sou, através do autoconhecimento o que me permitirá entender a relação que estabeleço com a sociedade em que estou inserida e com os outros.

Trata-se de um exercício que continua a ser árduo, mas nem por isso menos aliciante ou prescindível até porque: “quando uma coisa é difícil, não se pode abandonar só porque é demasiado difícil. (...) É precisamente isso que nos deve servir de estímulo. Se fosse fácil, poderia, agora, estar a descansar” (BEUYS, Joseph, 1972).

Já me senti nula, desesperadamente só, sem nada para oferecer a mim e aos outros. Uma incapacidade absoluta que pode levar a extremos… Um dia, há cerca de dez anos, escrevi que nunca tinha imaginado “que existisse esta forma de sobreviver… agarrada a um passado remoto e sem perspetivas. A contar histórias a ninguém, enquanto mordo biscoitos para adoçar as feridas da alma (…) Temo pelo silêncio absoluto”.

Trabalho com representações, reflexos das minhas vivências mais recentes ou do passado quase escondido, sem preocupações de narratividade ou de sequência. Também podem ser misturas de situações, experiências, acerca do mesmo assunto, observações daquilo que me envolve e que poderá ser fruído por camadas, cada vez mais opacas e densas, numa provável crescente dificuldade de penetração implicadora de aprendizagem. É nas primeiras camadas e retratando vivências, supostamente comuns a todos, que uma perceção imediata, selvagem (MERLEAU-PONTY, Maurice, 1959) pode detetar fenómenos gerais experimentados ou conhecidos por todos. Mudam os personagens, os espaços e os tempos, mas amor é amor, sexo é sexo, medo é medo, raiva é raiva, dor é dor, desilusão é desilusão, perda é perda, calor é calor e não me parece que exista alguém que não tenha vivido qualquer uma destas emoções, sensações ou sentimentos.

O silêncio mantém-se… No limite, não há palavras que o expressem. Um não-dizível anunciado por Ludwig Wittgenstein reforçado pela ideia de que o que dizemos é muito mais do que aquilo que dizemos e que “um mesmo conjunto de palavras pode dar lugar a vários sentidos, e a várias construções possíveis” (FOUCAULT, Michel, 1969).

Subsistem a leveza e a tranquilidade, o sossego e o caminho percorridos que adoçam arritmicamente a vida. Um sossego desassossegado, enérgico, arrítmico e que alimenta.

Hoje não é como ontem e amanhã será, certamente, diferente. O caminho faz-se caminhando…

Afinal, quem sou eu? Quem somos nós? O que somos ou valemos isoladamente? O que nos faz falta? Onde estamos e onde vamos? O que procuramos? O que faço, porque o faço? Poderá ser para deixar algo de mim e que possa prosseguir para além de mim ou de nós, porque dependendo da intensidade das vivências de cada um, do olhar, da interpretação, da predisposição e atenção ou das experiências que cada um teve, todos sentimos e emocionamo-nos…mas, uns vivem e outros já morreram mesmo antes do seu último suspiro.

 

No leer. Por si acaso en voz baja.

Eric Tormo Ballester, Barcelona, 2017

 

De: Enric Tormo <enric.tormo@gmail.com>

Enviado: 4 de março de 2017 20:27

Para: rute rosas

Assunto: Meigas

Rutita linda. Hoy me ha pasado algo de meigas o de inspiracion divina.

Estaba en libreria y ha cogido una edicion antologica de la obra poetica de

juan ramon jimenes. Abro y la poesia era” silencio” demasiada casualidad..

Besos embrujados

 

Era un día de diciembre. Quizás un 17. La calle invitaba a salir de casa. La puerta limitaba un interior y un exterior.

Sabía que era un día especial. Lo era por señalar también una frontera. Um antes y un después.

En la cocina estaba preparando un frugal desayuno. Algo de cereales. Algo de leche, no de vaca. Algo de zumo.

Una buena ducha y una indumentaria cómoda. Hoy todo sería diferente. Algo lo anunciaba…

La puerta se abre. Ningún sonido, ningún color, nada. ¿Dónde están los coches? ¿Donde los viandantes? ¿Dónde los árboles que marcaban la línea entre la calzada y las aceras?

Ha desaparecido todo. ¿Todo? No. Una burbuja de angustia, de temor, quizá de miedo va tomando forma y que desde el estómago y con discreto avance se infiltra por los diferentes órganos que compone un cuerpo que por la presión de la sensación va transformándose en baluarte contra la circunstancia.

Una densa niebla ha ocupado las calles, el espacio público, aquel que em diferentes ocasiones ha sido escenario de paseos pausados, de trifulcas entre vecinos, alguna vez, las menos, ha limitado las manifestaciones en pos de la mejora ciudadana, pero por encima de todos estas realidades ha sido el camino, el medio, que ha llevado al trabajo… y luego a la vuelta a casa, al hogar donde encontrar esa paz, ese silencio transcendental que perite la reflexión, el ensimismamiento, el recuerdo de aquello que pudo ser y que nunca será.

¿Un paso al frente? Miedo, angustia, ninguna referencia externa. ¡Vamos! ¡Ya! Primer paso, no pasa nada de nada, segundo, tercero, cuarto… la cosa se anima. De repente un encontronazo y un leve quejido. ¿Hola? ¿Hay alguien? Silencio. No se oye nada. Un giro sobre el eje ortogonal, 360 grados de no visión de no sonido.

Ánimo. Seguimos pero ¿hacia dónde? Ningún referente. Quizá se puede volver a la casa protectora, pero ¿Dónde está? ¿A la derecha? ¿A la izquierda? ¿De frente? ¿Quizá por detrás? No se sabe. Se han perdido los referentes. Mejor quedarse quieta.

Si mucho mejor. Parada. Pies quietos a la espera de acontecimientos. ¿Por cuánto tiempo? El reloj ya irá indicando el paso eterno del movimiento. Su tic/tac avanza y paulatinamente alcanza el destino, el final. Pero, ¿Dónde está?

Nada en muñeca la izquierda, nada en la derecha; un sí en el cajón de la mesita de noche. Allí se ha quedado. Un olvido. Una carencia mecánica que puede ser fácilmente solucionable. El tac/tac del corazón lo substituye. Pulsación a pulsación marca los espacios temporales hasta el hastío o hasta la perdida de la memoria. Falta el referente del inicio. Por mucho contar se ha perdido el valor tiempo.

De repente otro encontronazo. Nuevamente:

- ¿hola?

- ¿hola?

Uff finalmente una respuesta. Un posible congénere, un compañero, pero también un posible peligro: ¿ Algún asesino, algún delincuente, algún policía, algún inspector de hacienda? Quizá mejor pasar inadvertida.

- ¿Hola? Repite la voz sin cuerpo, sin materialidad, solo sonido aislado dentro ese magma que no deja ver nada. Es necesario hacer algo, uma respuesta.

- Hola soy yo.

- Bien, pues yo soy yo.

- Con tanto yo difícilmente nos entenderemos.

- Mientras tú seas tú, yo seré yo,

- Si claro y ellos serán ellos, o él si son pocos.

- No sigamos por este camino. Mejor será que nos acerquémonos hasta el contacto físico.

- ¡No! ¡Nada de eso! Me das asco. Me voy.

- Hola, hola….

Ninguna respuesta, nuevamente el silencio, el aislamiento. Si esta niebla se desvaneciera todo sería normal. Colores y sonidos. Sociedad y amigos. Confianza y entrega. Todo aquello que ha desaparecido y que conformaba la existencia personal y modifica la naturaleza para hacerla compatible com las reglas y las normas emanadas del poder. Un poder que no sabe eximir y por lo tanto es incapaz de reconocerse como tal. No es aquel poder capaz de transigir, aquel que se sabe supremo y por lo tanto no tiene miedo ni duda y cuya máxima ejecutiva es saber perdonar.

Parada en ningún lugar y el yo soy yo. Dos piernas, dos brazos una cabeza y un tronco. Materia sobre materia dentro de un magma indefinido. El tacto detecta algo. Ropa cómoda pero que aprisiona la suma de partes corporales.

Una encarcelación, un límite, una protección contra el exterior. ¡Fuera todo!

Nadie verá la desnudez.

Libertad completa. Libertad de movimiento, de pensamiento, de sentimiento, de palabra, de… Libertad ¿Para qué? ¿A donde ir?, ¿con quien hablar?, ¿como relacionarse? ¿Yo soy yo? ¡Ya no!

Volver a empezar. Algo nuevo. Algo diferente. Algo sin antecedentes y sin consecuentes, un total cero, una vacio, un posible camino, un cauce por donde discurrir. Especialmente un olvido, un espacio sin lastre. Un espirito.

La existencia por la existencia, sin peso sin pasado, solo el “ahora y aquí”, el “nunca jamás”. La utopía, del ningún lugar. Entonces solo resta el sueño, la idea, el más allá, quizá fuera la niebla. Esa lejanía inescrutada, pero imaginada donde lo no desvelado marca el destino. Ese, que fuera de materialidad, significa la pureza, la inmaculada, aquel que por su luminosidad flota en el ambiente. Pero: ¿dónde ir? Mejor: ¿Cómo ir? Mejor aun: ¿por qué? En cualquier caso no es factible la inoperatividad, hay vida, hay ineludiblemente un movimiento. Solo queda una posibilidad, andar, andar sin miedo al tropiezo. Para ello la ascensión es incuestionable. Arriba, arriba señala la dirección. Luchar contra la gravedad. Contra aquello que retiene los pies em el suelo. Espíritu, aliento, soplo es el motor que impulsa.

La pérdida de la circunstancia, de materialidad permite el renacer. El renacer diario, el del tic/tac o del tac/tac. Aquel que se inicia en cada latido y que da fe de lo posible. Aquel que desvela el devenir sin compromiso, sin pacto. Solo en la pureza, en la poesía, en el ser sentido. Lo inaprensible se torna objetivo.

El objetivo se torna intuición. La intuición se torna visión. La visión se torna realidad. Realidad exenta.

 

Agora ele está pensando

Fátima Lambert, Porto/Santiago de Compostela, Março 2017

 

Manoel de Barros,

“Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada”.

 

Ferreira Gullar,

“Poema sujo”, Obra Poética.

 

[…pensamentos como se fossem retratos quase apagados, dir-se-iam quase imaterializados…

vejo-me no espelho que olhou sempre; entendo a fuga e a sofreguidão.]

O que está em causa: a translucidez do silêncio e a morfologia – transparente, (trans)lúcida e opaca - da reflexão.

Os eixos de sustentação, anunciados pela própria escultora, remetem para estádios de alerta: são avisos de segurança para incautos observadores de nada. Não que seja imprescindível preencher o nada, acarinhando o vazio, alimentem-se os olhares de silêncio.

As esculturas de Rute Rosas são autorretratos entre o formato mínimo e a amplitude infinito do imensurável. Assim, como moldou traços e volumes do seu rosto, criando parcelas de si a passearem-se nas lapelas dos casacos de outras pessoas, ou mesmo pregados a paredes alheias, a artista agora cruza o entendimento do vidro soprado pela alma e as teias matizadas pelas encruzilhadas das certezas. São técnicas e estratégias para se garantir a harmonia que as coisas devem auferir quando se lhes atribui intenção de obra.

Por isso, o que vale é a concentração, a síntese, a retenção do fundamental. E o que é único e indivisível ocupa espaços flexíveis, pois sabe ajustar-se e ser tomado por quem o reconheça e valorize.

Na realidade, o espaço, a área que as coisas ocupem é assunto a descartar, no que seja a sua compreensão literal. A dimensão e o formato são dados que podem ser obliterados por condições psicoafectivas insuspeitas, permitindonos avançar além de circunscrições estanques. As configurações que tomam, algumas em quase levitação na sala, entre paredes que não cerceiam e tetos que se abrem, transmutam-se, reconvertem-se e aquietam-se…por vezes.

São pequenas e subtis excertos de ideias, são frases que decidiram ganhar fisicalidade, cansadas de serem [apenas] conceitos – ainda que de altíssima estirpe, caso contrário o seu corpo-obra não lhes seria suficiente.

Evocando Almada Negreiros que, por sua vez, apelou para Hermes Trimegisto, que o coadjuvar em epígrafe na Invenção do Dia Claro: “Tudo está em tudo.” E: “Tudo se aguenta de pé provisoriamente – ainda não está prompto, vê-se perfeitamente que ainda não é tudo.” (NEGREIROS, 1993, p. 21) Numa certa aceção a moldabilidade das peças de vidro e a fragância das ideias que se volatilizam possuem esse dogma da reversibilidade e da polissemia ainda que as aporias nos atraiçoem…quem sabe.

A decisão, seja ela consciente ou mais pulsional, cabe a cada um de nós decidí-la, enquanto sujeitos estéticos felizes - dominará inequivocamente a perceção das obras. Ou seja e porque:

1. Os trajetos a empreender, quando se visite a exposição, são decididos pelos visitantes. Consoante se movam, situem ou fixem, ser-lhes-á possível aceder a diferentes camadas de visão, percebendo distintas aceções formais e invisíveis das obras. Haverá que usar a multiplicidade de ângulos para atravessar a superfície, sobrevoa-la. Pela persistência no exercício de ver, talvez se atinja o âmago de perceções – por ínfimas que possam considerar-se, lembrando José Gil [imagens nuas e pequenas-perceções] – e, portanto, rever a identidade dos pensamentos.

2. As ideias agudizam-se e, num impulso centrípeto, convergem para a tessitura do vidro e de fios trespassados, para a coloração metódica que lhes pode atribuir maior ou menor espessura quando olhadas e percebidas. Convocam-se elementos, alimentados por alquimia de ideias e que protagonizam uma revolução contínua.

3. A lisibilidade das coisas, assim como das ideias, é in/não-definitiva. O que significa, reconhecer-se-lhes o fato de estarem situadas num estado de concretização. É uma plataforma de entendimento sensível, gerado pela ação de diferenças poéticas consecutivas, provocadas pela acutilância [do olhar] do observador-visitante. As obras passam a suportar, carregam em si – mediante absorção discreta – o olhar dos outros.

Os conceitos que administram esta exposição evocam os territórios gratos da reflexão e do silêncio, como acima se referiu, agregados pelas insinuações leves e múltiplas que lhes possam ser atribuídas.

 

Manuel Bandeira,

“O Rio”, Estrela da Vida Inteira.

 

Na pintura quando se pretendem representar reflexos, transparências translucidezes há que representar, que exercer a similitude que ilude. Obriga-se a que o contemplador identifique e isole o que é o real do virtualizado na superfície especular. Nos espelhos, quase invisíveis, onde tudo se acumula, indiferenciam-se reconhecimentos de figuras, objetos, matérias mais ou menos insinuados através de perceptos-vestígios. A superfície pictural gruda em si mesma a camada de duplicação distorcida ou perfetibilizada do objeto, ser ou ideia que emite a imagem primeira. Quando se trata de ver imagens transpostas, totalizadas ou em detalhes, a reverberar em zonas tridimensionais polidas ou espelhadas, carece atender às circunstâncias de um outro patamar do paradigma diferenciador. Pois é a camada superior que reveste a volumetria, que organiza e direciona a configuração do refletido em imagem consecutiva, senão persistente. Quanto a perceções, quanto a fatualidades, as reflexões e os reflexos, são transmutações mimetizadas pela luz a incidir, que se resolvem de modo singular, individuado, quer quando emanam em 2D ou em 3D. Sendo esculturas em vidro transparente, atiradas para espelhos talhados, origina-se um enigma maior e carregado de exigência. Existem simetrias e dissimetrias, tratam-se os espelhos mentais – parafraseando o título do livro de Richard Gregory Mirrors in Mind (1997) – como excertos poéticos em sublimidade e leveza sustentável (contrariando Milan Kundera).

Na escultura, que é o caso, tanto mais que as peças alastram pelo espaço convertendo-o em lugar decisório, tudo se revê e nos obriga a retificações conceituais sucessivas, felizmente infindáveis pela sua novidade e quietude.

Os espelhos, os vidros, apropriam-se de não-cores ou de pigmentos. Estes, assim persistem, na sua condição privilegiada de gota suspensa, em fio-deprumo gravitando sobre o chão, todos divagando em sinuosidades até caírem no olhar do espetador ou vice-versa.

 

Yukio Mishima, O templo dourado.

 

Fala-se, pois, sobre presenças tão subtis que quase se dissolvem num olhar mais agudizado e perspicaz.

As palavras agarram-se a movimentos suspensos, estabelecem-se transitoriamente mediante o nosso olhar quando incide nas coisas, correspondendo a impulsos de ascensão e paragem – uma espécie de epoché.

E, consequentemente anseia-se pela queda que demore e dure, espécie de perceção estética a planar em voo leve. Tudo decorrerá, manobrado pelas ondas invisíveis de ver, consoante o espetador se posicione perante as esculturas e estas transparecem no espaço em tensão de vazio. Fique, pois, a decisão do visitante que queira tocar a pele das obras, sentir o frio do vidro depois da sua iridescência.

Tudo, pondere-se, quase tudo é categorizável: desde as questões que roçam a imaterialidade, até aquelas breves aporias que enobrecem o desconhecimento, apelando, clamando pela evidência dos improváveis.

Rute Rosas concebeu uma apresentação de obras sustentadas nesse “silêncio líquido”, ao qual o poeta de Goiás se referia. O silêncio líquido solidifica-se em vidro, que transparece luz e sombra. São [i]matérias em suspensão. Inspiram, configuram-se e suspendem a respiração, aguardando que volte a ausência. As peças de esculturas tornam-se leves, subtis, errando numa zona de possibilidade de dissolução que instiga a razão.

Numa certa perspetiva, as figuras esculpidas são ausentes, corpos invisíveis dominando os constructos, com tal intensidade e convicção que lhes acho conversas análogas ao virtuosismo poético de Manoel de Barros. As formas sinuosas do recorte do bonsai primam pela transparência de intocável apelo de silêncio.

[As gotas de orvalho materializadas sob luz e vidro, associo-as às coletas efémeras e utopistas de Brígida Baltar. Refiro-me ao processo de recolha de matérias atmosféricas: maresia, orvalho e neblina, que a artista brasileira empreendeu entre o final dos anos 1990 e os primeiros anos do séc. XXI. As suas deambulações pela serra, pela orla marítima ou nos arredores do Rio de Janeiro evaporaram-se, restando as fotografias. No caso da artista portuguesa, a decisão radica na tranquila pacificação do vidro, do espelho e dos fios que permanecem precários mas resistentes na matéria breve. Talvez, nas suas viagens ao Brasil e a outros destinos, Rute Rosas tenha sentido a delicadeza das coisas pequenas e felizes. Talvez a pequenez de conhecimentos concentrada em tanta delicadeza se tenha fusionado – de modo surpreendente - na densidade granítica (e prudente) das terras do Norte português.

Na obra de Rute Rosas as matérias voláteis transfiguram-se em condensações de vidro.

Há algo que, subtilmente, procede da lentidão, da sabedoria morosa, essa condição e privilégio raros para se verem as coisas, frequente quando se está do outro lado do Oceano e persistindo quando se regressa.]

Cada uma das peças, apresentadas pela Escultora, entra em cena com a dignidade de frases amadurecidas.

 

Editora

Universidade do Minho

ISBN: 978-972-8340-19-3