A Autocensura como Agente Poético Processual na Criação Artística

Rute Rosas, 2016

 

Resumo

Pela necessidade do recurso à linguagem escrita como ferramenta universalmente traduzível - associada à necessidade de uma articulação entre o que se entende por linguagem, discurso, narratividade, denotativo e conotativo - definem-se critérios metodológicos que estabelecem ligações com o meu pensar e agir artisticamente. A escrita epistol@r ou de c@rtas evidencia - foi estruturante e estruturadora - todo o processo/ação. Trata-se do elemento impulsionador ou a Alma de um Corpo e que justifica quer a importância da Partilha com Outro num grau de exclusividade, como a consequente Autocensura - uma escrita performativa privada.

Em Processos de Criação que implicam uma relação umbilical Arte/Vida, Corpo/Mente, Espaço/Tempo – no seu sentido vivencial – e, consequentemente da Autorrepresentação e/ou da Autobiografia, a Autocensura enquanto agente poético assume-se como:

Considerando que as Obras de Arte são expressões formalizadas plasticamente - pensamentos que dão origem a ações que, pela sua autonomia e capacidade comunicante, sentem-se, ativam sensações, podendo estimular a sinestesia – cada um as sentirá de acordo com a sua experiência vivencial e a sua predisposição, pelo que os criadores serão aqueles cuja vida se centra atentamente na expressão do sentir através de processos e materializações distintas.

Numa combinação entre o já vivido e o que se está a viver (que nesta altura já se viveu – pertence ao passado pela efemeridade do momento) procuram-se expor processos de criar, criativamente, recorrendo à Memória e Recordação através do Impulso da Imaginação Criadora, conscientes da nossa capacidade de recriar o que naturalmente implica uma estrutura não-narrativa e inconclusiva.

 

Texto Integral

Para introduzir o leitor no tema da Autocensura como agente poético processual na criação artística e no que diz respeito à minha experiência vivencial, começo por remeter para a leitura das passagens não censuradas de um Pensamento Alto[1] ou, em voz alta, seguido da sua representação em imagem.

Tenho constatado que há uma espécie de valor adquirido socialmente que determina que os artistas são livres, ou mais livres do que qualquer outro ser humano – como se de uma característica se tratasse. Essa verdade ou característica é falsa, apesar de cómoda em muitas circunstâncias. “Não consigo de modo algum entender o problema da chamada liberdade ou falta de liberdade de um artista. Ele nunca é livre. A nenhum grupo de pessoas falta mais liberdade”(TARKOVSKI, 1998). Mesmo que consideremos a existência de uma liberdade no modo como o artista se expressa ou relativamente aos meios que utiliza, estas decisões implicam uma enorme responsabilidade e consciência da socialização - o confronto que aquilo que apresenta como resultado do seu ver e sentir a/as realidade/s envolvente/s, terá nos outros.

Nas circunstâncias apresentadas e determinadas pela vida, poderá existir (neste caso e neste contexto, existe) um Outro especial que adquire um lugar de exclusividade intermediária no processo, o que não será sinónimo de liberdade - a diferenciação entre o Outro e os outros pode ser, aparentemente, ténue mas é central e estruturadora.

Existe, inevitavelmente, uma censura inerente ao processo de criação e à intimidade ou à “confidência exclusiva ao outro” (FIGUEIREDO, 1998), no entanto, podemos dizer que o Outro foi conquistando um nível de censura quase diminuto, mas que não anula a autocensura, pela sua interligação com o processo vivencial e pela revisão da necessidade de uma partilha com todos os possíveis outros – o público, os espectadores ou fruidores.

Assim, considera-se que a continuidade da partilha[2] pode permitir a abertura a uma consciência dos processamentos inconscientes do Impulso da Imaginação Criadora, fundamentais ao reconhecimento da localização do Eu – o Self[3] (GOFFMAN, 1993) - e do Outro como parceiro.

O assunto da autocensura conduz à indagação de uma definição e enquadramento simples e facilmente percetível. A autocensura é, neste contexto, a censura aplicada ao meu próprio comportamento, às minhas palavras, aos meus escritos, pelos mais diversos motivos sejam estes: morais, éticos, pessoais, profissionais, políticos.

Se em termos académicos ajuíza-se que tudo aquilo que é oral é verídico e que essa veracidade não é científica, não é constatável[4], por outro lado o discurso oral tem características da expressão plástica – verídica e conotativa.

Deste modo, e dado que a linguagem escrita pretende-se denotativa, semântica, procura-se um discurso próprio dentro da sua especialidade ou, passando para a escrita, teremos que entender diversos formatos e possibilidades ou hipóteses.

A palavra é alvo do exercício de poderes que a controlam; os poderes não incidem apenas sobre os corpos, mas também sobre as palavras, pelo que a novidade não estará naquilo que se diz mas no evento ou “acontecimento do seu retorno” (FOUCAULT, 1971a).

Provar, ter provas de, comprovar que, são requisitos da ciência e considerando que o tempo é linear, bastar-nos-ia demonstrar uma vez cada um dos exemplos/questões aplicando a regra do seu funcionamento, mas… o que agora é verdade pode não o ser amanhã. Independentemente da liberdade e dinâmica que estas considerações implicam, o método científico, como o conhecemos, resulta de uma sustentação das nossas afirmações e esta, por consequência, parece retirar muita da validade da opinião de quem vive a experiência, reflete sobre ela e escreve acerca dela - a normalizaçãode um método não valora o conhecimento verídico, vivencial independentemente da intensidade ou qualidade.

A diferenciação entre verdadeiro e verídico na escrita, por exemplo, passa pelo referencial, pela citação de vários autores que sirvam à sustentação de um pensamento ou ideia. Trata-se de uma questão de conforto e passividade, quando, pelo contrário, dir-se-ia que o conhecimento é dinâmico e não-pacífico.

Segundo Michel Foucaultquando alguém constrói um discurso oral está dentro daquilo a que se chama verídico e, portanto, não é obrigatoriamente verdadeiro por não ser passível de ser comprovado e, consequentemente, não se adapta ao método científico. Por outro lado, e em termos psíquicos, o discurso necessita de ser verídico para ser credível, independentemente de se tratar de mentira ou verdade e daí que Foucault refira que o que dizemos é muito mais do que aquilo que dizemos ou que “um mesmo conjunto de palavras pode dar lugar a vários sentidos, e a várias construções possíveis" (FOUCAULT, 1969b).

É neste contexto que encontramos semelhanças com o que acontece com a prática artística por esta ser aberta e suscetível de várias interpretações, pelo que poderemos concluir que o discurso oral tem características semelhantes aos da poética processual da criação plástica - é verídico e conotativo.

Salienta-se que a linguagem verbal contempla determinadas características que a distinguem da arte. A linguagem verbal, assim como a escrita, tem uma gramática, um sistema de ordenar os conteúdos que a condicionam e a regulamentam - estamos condicionados pelos limites da semântica.

Além disso, a linguagem verbal permite remeter-nos diretamente para a ideia, enquanto em arte a verbalização poderá servir como um meio para chegar à ideia: poderá servir para descrever, explicar técnicas, processos operativos ou enquadramentos, não deixando de ter carácter conotativo - a realidade da Arte dá-se pela sua própria existência.

Foi numa conversa tida no Skype com Enric Tormo Ballester, abordada na c@rta de 9 de julho de 2006, Domingo, Re: depois do Skype – nas imagens abaixo - que me apercebi da necessidade da total abertura e confiança, sem medo das fraquezas, dos problemas envolventes, de rir ou chorar.

Num processo como este, confia-se no Outro, procura-se entender o Outro, respeitando as suas ideias, partilhando as nossas.

A partir deste momento tornou-se clara a interiorização dos processos enunciadores de um percurso e ambos estávamos conscientes da predisposição necessária mas também que se trataria, muitas vezes, de um desafio doloroso - o diálogo atinge uma forma de expressão primordial do pensamento como valor da comunicação humana.

Ao longo do tempo e de muitos momentos de reflexão, de escrita, de conversas presenciais ou não, de troca, a segurança na possibilidade e responsabilidade de entender processos de criação pela tentativa de tornar consciente e de verbalizar ou escrever, possibilitou que se fosse construindo um imenso Corpo expresso pela vontade/necessidade de entender outros colegas, outros artistas - aquilo que se passa em nós antes e durante o processo de materialização das nossas ideias/pensamentos, sonhos, devaneios ou, muitas vezes, o que se intui.

As correspondências entre memória e recordação, sentidos, sentimentos e emoção são variantes elementares para o estudo e entendimento de Processos de Criação/Projetos Artísticos e do que designo por Impulso Artístico ou Impulso da Imaginação criadora.

Estes princípios são enunciadores do desenho e da estrutura conceptual que irá desenvolver-se durante este trabalho, sendo indispensável considerar os diversos enquadramentos temporais, sociais, políticos, geográficos – o entorno.

Cada artista, filósofo, pedagogo, …, criadores em geral aqui referenciados, bem como as suas obras e/ou os seus projetos enquadram-se num determinado entorno – questão fundamental para o entendimento do leitor/fruidor – e depende de nós, da nossa capacidade de leitura enquadrada mas flexível e, portanto, permeável à distinção entre o que poderá ter sido a fundamentação de um pensamento do séc. XIII, uma obra de arte dos anos 50 do séc. XX, uma carta da primeira década do séc. XX, uma c@rta, um documento ou uma obra de arte da primeira década do séc. XXI. As proximidades e distanciamentos deverão ser tidos em consideração, mesmo que no essencial se esteja a tratar de pressupostos que perduram no Tempo e no entendimento da essência da Vida, de Valores, do Ser humano e de questões relativas à Arte, ao que chamamos de Impulso da Imaginação Criadora, ao processo de criação bem como às suas poéticas – assuntos que tendem a transportar-nos para a intimidade.

“Eu não estou a tentar convencer ninguém de nada – não posso. Tudo o que posso fazer é ter estes flashes de intensa experiência que se representam por isto, por isto e por isto. (…) A um determinado nível, isto é concepção – a arte é acerca da vida” (BOURGEOIS, 1998). O processo de criação não é dedutivo, é intuitivo.

Se em Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein (1995a, p. 142) escreve, que “acerca daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio”, como se de alguma maneira resumisse o sentido do livro, posteriormente, vem clarificar e acentuar esse mesmo sentido, aclarando que a sua obra admite o que nela se apresenta e tudo o resto que não escreveu – que entende como a parte queimporta. Será relevante ainda que entendamos que, numa cisão lógica/ética, a ideia de procurar a essência do sentido no domínio da lógica – denotativo - é diversa numa relação ética/estética pela impossibilidade de utilização de normas ou critérios objetivos em artes plásticas - estes são do âmbito da ética e da estética e portanto, transcendentais ou conotativos.

Wittgenstein (2007b, p.91) deixa evidente a necessidade de ocultar, obrigando-nos a uma reflexão sobre os limites da linguagem – entre o dizível e o não-dizível. Deste modo, e “mesmo que alguém fosse capaz de expressar tudo o que está no seu interior, não o conseguiríamos compreender”.

Uma das mais marcantes artistas plásticas do século XX, Louise Bourgeois, poderá servir ao entendimento do uso da palavra, do discurso, pelo simples facto de ao longo da sua vida ter escrito diários, anotações, fornecido entrevistas, que apoiaram e deram origem a publicações, o que, numa primeira abordagem, pode parecer antinómico. A verdade é que não o é, pois por muito que Louise Bourgeois escrevesse ou falasse, manteve sempre uma desconfiança e insatisfação relativamente às palavras. As palavras não lhe interessavam por serem sofríveis de desgaste.

Como um meio de comunicação à distância, e independentemente das suas diferenciações, motivações ou intenções, as cartas - escritos relativos à esfera privada ou escrita privada - têm uma característica comum que as define como modalidade da escrita e que se pode definir por um complexo sentimento de complementaridade no qual existe, conjuntamente, ausência e presença.

Na peculiaridade do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, assinado pelo semi-heterónimo Bernardo Soares, podemos ler, numa das cartas escritas a Mário de Sá-Carneiro[5] e datada de 14 de Março de 1916, as seguintes palavras: “Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. (…) De que cor será sentir?” (1982, pp. 43-47)

Não podendo afirmar qual terá sido a resposta a esta carta, Mário de Sá-Carneiro, grande poeta e novelista, escreve ao seu amigo anunciando o seusuicídio. As centenas de cartas a Fernando Pessoa, escritas entre Outubro de 1912 e Abril de 1916, quer documentam a relação confessional entre os dois artistas como os retratam psicologicamente, além de serem um valioso testemunho histórico. São a comprovação de uma relação de intensa amizade e partilha: “As suas cartas, meu caro Fernando, essas são, (…) alguma coisa de profundamente bom que me conforta, anima, delicia – elas fazem-me por instantes, feliz” (SÁ-CARNEIRO, 2001).

A intimidade e a confidência presentes nestas cartas são igualmente sentidas na correspondência trocada entre os artistas plásticos Lygia Clark e Hélio Oiticica publicadas no livro Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-74 onde se revelam muitos aspetos que ultrapassam a obra de arte.

Durante a leitura desta troca de correspondência organizada por Luciano Figueiredo apercebemo-nos desse carinho[6] e cumplicidade entre os dois que é, inclusivamente, anunciado na troca de ideias, no processo de criação das suas obras, ou na ajuda mútua na divulgação das mesmas. Este pequeno livro inicia-se com uma frase de Lygia Clark de 1986, seis anos após a morte do seu amigo, reveladora da ligação profunda entre os dois e simultaneamente demonstrativa do elevado grau de entrega e de intimidade da relação construída: “Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo exterior. Eu, a parte de dentro. Nós dois existimos a partir do momento em que há uma mão que calce a luva” (1998, s/p.)

Provavelmente dir-se-ia que não existe maior nem melhor testemunho da vida e obra de muitos autores do que os seus escritos e/ou a correspondência que trocaram com amigos ou familiares. Com base nestes documentos e nas suas obras podemos conhecer melhor quem são, quem foram, o que e porque fizeram determinada coisa, determinada obra, em que situações viveram, como pensavam, o que sentiam.

Uma das questões que colocamos, e que se tornou igualmente motivação, é a da garantia relativa à vontade, à autonomia de decisão da publicação de determinados escritos - como por exemplo cartas e diários – por parte de quem os escreveu.

Independentemente do seu valor documental parece-nos relevante fazer a distinção entre o que é privado e o que é ou se torna público - será da responsabilidade e da liberdade individual do artista, enquanto indivíduo, o permitir que o seu processo seja exposto ou publicado?

Roland Barthes entendia que a análise textual implica uma predisposição e atenção para o facto de que um texto é como um tecido, como um novelo de vozes, que utiliza muitos códigos, simultaneamente, interligados e inacabados, pelo que o processo na linguagem nunca é transparente (Barthes, 1981). Poderemos falar da “verdade” ou da “realidade” únicas?

As decisões tomadas derivam num processo de autocensura, como a questão dos meios utilizados na sua apresentação e a sua relação com o tempo: os meios alteram o tempo e o tempo altera-se com os meios.

Em muitos casos, a poética dos processos de criação está intimamente ligada à ontologia e à antropologia - o Ser (existir) no Tempo.

Escrever c@rtas só é possível há relativamente pouco tempo, e só este fator distingue toda a relação estabelecida com o tempo. Deste modo, a expressão c@rta, adquire um significado diverso de email ou carta.

As questões narrativas são tratadas cronologicamente, sem a preocupação da narratividade Aristotélicae, portanto, valorizam a construção textual não-linear: existe na casualidade, na circunstância que é registada naquele momento - o ato deescrever como ação performativa. Trata-se de narrativa epistolar, cronológica e de carácter ontológico, na qual a disposição para a entrega é definidora dos resultados que advêm de uma necessidade de contacto constante e de características relacionadas com o quotidiano, as vivências, ou aspetos confessionais que ativam a memória e as recordações – o que parece ser similar ao processo do acordar de um estado de adormecimento.

Isto quer dizer que, quando recordamos alguma coisa, quando tornamos explícito o que estava implícito, modificamo-nos emocionalmente e também a própria coisa. Cada vez que ativamos uma recordação construímos uma reformulação da mesma, pelo que podemos falar de re-recordação, ou recordação da recordação, sucessivamente distintas.

Se o aprofundamento do conhecimento transforma e altera naturalmente algumas das nossas referências e opiniões há, paralelamente, uma personalidade caracterizadora do nosso pensamento que permanece e persiste conduzindo-nos à pesquisa, ao saber e ao questionar mais, no encontro com outras ou novas refutações sobre os temas que nos motivam, mesmo quando conjeturamos acerca da possibilidade de soluções e/ou respostas.

Considero a expressão artística como uma extensão da vida, estruturadora da consciência e um instrumento modificador da sensibilidade.

Se os objetos, as ações ou ambientes que crio modificam-me, motiva-me pensar que podem transformar quem os frui, deixando-lhes um registo na memória ou reativando recordações, momentos e experiências vividas no passado, noutro contexto e de uma outra forma, num reencontro com o escondido ou adormecido, que sempre esteve próximo sem que tivesse sido exaltado ou enaltecido. Num entrelaçamento do Tempo com o Espaço, entre o tangível e o visível, entrando e saindo simultaneamente de mim, prossigo na descoberta de outros tempos e espaços, onde cada um poderá encontrar os seus, elegendo-os.

Desta forma, nas minhas concretizações ou materializações artísticas pode haver uma tendência para esperar alguma coisa no que se refere ao Outro, mesmo que nunca o venha a saber.

Pressupondo que o conhecimento disposicional para recordar é imprescindível, começo, em primeiro lugar, por me confrontar comigo própria, com aquilo que sou, através do autoconhecimento o que me permitirá entender a relação que estabeleço com a sociedade em que estou inserida, com os Outros.

Um dos maiores educadores para o uso dos sentidos, dos artistas mais influentes da década de setenta e uma referência na arte do séc. XX - colocando em prática as ideias filosóficas e educacionais de Rudolf Steiner - foi o alemão Joseph Beuys.

Beuys defendeu que as falhas de formação e educação têm origem na infância. A obra sonora Ja Ja Ja Ja Ja Ja, Nee Nee Nee Nee Nee[7], de 1968, é tão singular na resposta dada por crianças como por adultos. Isto implica um problema educacional de base e de formação e informação, no qual os artistas podem tentar influir com as suas ações - uma séria tarefa da arte que pode resultar num aliciante estímulo. Até porque “quando uma coisa é difícil, não se pode abandonar só porque é demasiado difícil. (...) É precisamente isso que nos deve servir de estímulo. Se fosse fácil, poderia, agora, estar a descansar” (BEUYS, 1995).

Nas pesquisas realizadas, em conversas com diversos artistas, em troca de correspondência, depoimentos registados em áudio, leituras de escritos, cartas ou entrevistas, apercebi-me da repetição das palavras obsessão, necessidade, intuição, intensidade ou flash, no que diz respeito à tentativa de descreverem o Impulso da Imaginação Criadora.

No meu caso, e anuindo com muito daquilo que foi dito pelos artistas mencionados, existe uma seleção de ideias em muitas alturas da vida e isso sabe bem, é mais do que bom, é uma sensação fantástica de nervosismo e impotência, porque deixa água na boca, mas simultaneamente uma sensação de riqueza interior. Quase inexplicavelmente há seleção, que considero intuitiva, e a partir desse momento torna-se obsessivo ter, ver pronto, porque dentro de mim está quase tudo, ou mesmo tudo concluído e o tempo de concretização parece ser sempre demasiado.

Trabalho com representações, reflexos das minhas vivências mais recentes ou do passado quase escondido, sem preocupações de narratividade ou de sequência. Também podem ser misturas de situações, experiências, acerca do mesmo assunto, observações daquilo que me envolve e que poderá ser fruído por camadas, cada vez mais opacas e densas, numa provável crescente dificuldade de penetração implicadora de aprendizagem. É nas primeiras camadas e retratando vivências, supostamente comuns a todos, que uma perceção imediata, “selvagem” (MERLEAU-PONTY, 1994) pode detetar fenómenos gerais experimentados ou conhecidos por todos. Mudam os personagens, os espaços e os tempos, mas amor é amor, sexo é sexo, medo é medo, raiva é raiva, dor é dor, desilusão é desilusão, perda é perda, calor é calor e não me parece que exista alguém que não tenha vivido qualquer uma destas emoções, sensações ou sentimentos.

Se o processo de criação está intimamente relacionado com aquilo que vivo, com as minhas inquietações, sonhos, expectativas, desilusões ou fantasias, então posso considerar que a criação também vem da necessidade de tentar resolver, dar respostas em ciclos que podem pretender clarificar – uma espécie de luto luminoso.

 “E assim passamos de questão existencial em questão existencial, numa tentativa de resolução do mundo a começar pelo que vai borbulhando dentro da minha redoma para questões que no fundo tocam as redomas dos outros[8]”.

Considero ser mais importante o que nos aproxima do que aquilo que nos afasta e que os artistas que trabalham a autobiografia ou a autorrepresentação deparam-se com um grande problema que passa, por vezes, pelo não entendimento de quem analisa ou traduz, em teoria, pois “mudam o contexto e as pessoas podem pensar: é uma história que só interessa a ele ou ela. Mas na verdade a grande questão do trabalho é que se trata de criar pontos de contacto: com outras pessoas, com outras culturas[9]”- uma relação profunda de entrega a si mesmos e ao Outro, de partilha.

Pode considerar-se o filósofo e poeta Gaston Bachelard[10] (1884-1962) como uma referência para muitos artistas plásticos, nomeadamente escultores. Quem lê APoética do Espaço (Lá Poétique de L’espace, 1957), ou a Poética do devaneio (Lá Poétique de rêverie, 1960) poderá ter sensações semelhantes às expressas por Alberto Carneiro: “Encontrei-o através das minhas vivências com a matéria, no prolongamento das minhas reflexões, na definição de uma poética que me tinha chegado mais pelo sentir e que encontrou nele a formulação teórica” (CARNEIRO, 2007).

Trata-se de formação e informação, de complementos e não arquétipos ou doutrinas a seguir. A identificação com a formulação de um pensamento ou a expressão do mesmo, não implica, nem compromete a nossa posição mas poderá servir de complemento, de abertura em oposição ao fechamento ou clausura relativamente a qualquer doutrina ou mesmo moda. Talvez porque tenhamos que começar o caminho por aquilo que nos está mais próximo para conquistarmos a capacidade de sair e de nos abrirmos relativamente ao que nos envolve.

Como já referimos, não é pressuposto decifrar o processo artístico, nem criar relações diretas e objetivas entre o que o artista diz e o que faz. É sim apresentar paralelismos ou relações passíveis de serem aprofundadas porque não são consideradas acasos, mas entender que existem encontros determinantes nas experiências vivenciais que determinam uma escolha - a decisão.

Quando se trabalham temáticas como as apresentadas, nomeadamente a da autocensura durante o processo de criação, tendo a memória e as referências do passado em mente, sente-se uma profunda insatisfação e impotência.

A autocensura nos processos de criação revela-se através de um encadeamento sempre inacabado e nunca absoluto. Basta uma variação nas conexões que se realizam no cérebro e no nosso organismo para que as construções que fazemos do mundo e dos ambientes que nos rodeiam sofram alterações significativas. Disto tudo depende a perceção, o raciocínio, numa parceria corpo-mente, emocional-racional. Um envolvimento direto com a memória, com o passado, com o anterior e o interior.

A tentativa de uma aproximação à definição de Memória é certamente assunto para um grupo de investigação interdisciplinar. Além disso, a este grande e vasto conceito associam-se outros – recordação, lembrança, reminiscência – e que foram tratados e desenvolvidos[11] ao longo da história da humanidade.

No que diz respeito ao tema central desta comunicação, parte-se do princípio de que existem diversos tipos de Memória e que estes podem estar ou não associados à experiência vivida por cada um de nós e, deste modo, o Recordar poderá ser distinto.

Procurando ilustrar com dois exemplos: Terei eu recordações da 2ª Guerra Mundial? Não é possível que tenha ocorrido comigo qualquer dado neste período, mas guardo na minha memória o que aprendi, li, ouvi, retive e tenho a capacidade de trazer para o momento presente. Por outro lado, se evocar um aroma dizendo: “cheira a pão acabado de sair do forno”, o processo será diferente. Na nossa memória retemos este aroma e até o poderemos por momentos sentir, mas cada um de nós, desde que saiba o que é pão quente, poderá recordar de forma distinta e individual um momento, um episódio vivido, seja este mais presente ou mais distante, ou sejam um ou vários.

Os processos de criação não permitirão uma perspetiva cronológica do tempo no sentido narrativo, mas não se podem identificar como completas abstrações. Pelas suas singularidades, e pela capacidade para recordar, atestam a riqueza nas possibilidades que nos oferecem de reinventar a existência. Através da memória - que armazena e é contaminada -, da sua constante atualização pelo que é vivido – num vaivém entre os diversos passados da experiência vivencial –, e da Imaginação, revisitamos espaços, objetos, recriamos conceitos, fazemos conexões entre os sentidos, o que nos permite e coopera na compreensão das obras de arte e dos processos de criação.

O saber racional e a invenção poética não são essencialmente excludentes. Opostos em determinadas instâncias, culminam ambos no momento da imaginação criadora.

Numa obra autobiográfica, o constante recurso à recordação vai definindo um tecido contínuo no qual não parece fazer sentido o estabelecer de uma ordem diretamente relacionada com a história da vida – não é um diário.

O medo gera a dor, que atrai e repele, que integra e desintegra. O prazer e a dor tocam-se e estão, ao mesmo tempo, separados por uma barreira muito ténue, como na dualidade amor e ódio. As tensões geradas podem desenvolver estados de euforia e de aparente felicidade.

Tenho por hábito dizer que o nosso maior medo é termos consciência de que estamos sós, e tive de me sentir em absoluta solidão para aprender a viver melhor socialmente com determinadas realidades.

Nesta relação umbilical Arte/Vida, na qual “a arte é a minha forma de conhecimento do mundo” (PAPE, s/p.), o artista e a obra constroem-se mutuamente, organizam-se e comunicam entre si – os assuntos do artista são “as emoções e as ideias” (BOURGEOIS, 1998), juntos num compromisso através do qual a obra oferece ao artista sugestões que podem sobrelevar o seu projeto inicial enquanto criador. Do processo de criação e da obra de arte, o artista recebe ensinamentos constantes.

Quando este momento acontece, quando deixa de ser o imaginado e se concretiza, podemos sentir uma estranheza… parece que sempre existiu ou esteve por ali oculto, em estado latente, dentro, e que agora se tornou independente, autónomo e comunicante por si.

Experimentar, colocar-me em experiência como cobaia de mim própria, num exercício de procura da consciencialização de processos inconscientes, intensifica o processo de autoanálise e autoconhecimento, permite reconhecer singularidades - um enriquecimento e estranhamento simultâneos. O exercício para a obtenção do autoconhecimento continua a ser um caminho árduo e metódico, mas nem por isso menos aliciante ou prescindível.

Não devemos passar ao lado da experiência que é viver, nem mesmo nos momentos em que segredamos ou gritamos: “Sinto-me como se tivesse cegado por excesso de olhar o mundo” (AL BERTO, 2009).

 

Referências bibliográficas

AL BERTO. O Medo – Trabalho poético 1974 – 1997. 4ª Edição. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Coleção Tópicos. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1989.

BARTHES, Roland. Mitologias. Coleção Signos. Lisboa: Edições 70, 1988.

BEUYS, Joseph, BODENMANN-RITTER, Clara. Joseph Beuys – Cada Hombre, un artista- conversaciones en Documenta 5 – 1972. Madrid: Editorial Visor, 1995. Tradução da autora.

BOURGEOIS, Louise; BERNADAC, Marie-Laure; OBRIST, Hans-Ulrich. Louise Bourgeois - Destruction of the father - Reconstruction of the father, Writings and Interviews 1923-1997. Londres: Violette Editions, 1998. Tradução da autora.

CARNEIRO, Alberto.Das Notas para um Diário e Outros Textos – antologia. ColeçãoArte e Produção. Lisboa:Assírio & Alvim, 2007.

FIGUEIREDO, Luciano (Org.); CLARK, Lygia: OITICICA, Hélio. Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-74. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.

FOUCAULT, Michel. L’Ordre du discours, Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris, 1971a. Disponível em http://www.scribd.com/doc/2520353/Michel-Foucault-A-Ordem-do-Discurso. Acesso em 10 de agosto de 2013.

FOUCAULT, Michel. L’Archéologie du Savoir. Paris: Éditions Gallimard, 1969b. Tradução da autora.

GOFFMAN, Erving. A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias. Coleção Antropos. Lisboa: Relógio D’Água Editores Lda., 1993.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Coleção Tópicos. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1994.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Lisboa: Ática, 1982.

SÁ-CARNEIRO, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.

TARKOVSKI, Andreaei. Tarkovski - Esculpir o tempo. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1998.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas. 2ª Edição revista. Lisboa: Edição Fundação Calouste Gulbenkian, 1995a.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Últimos Escritos Sobre a Filosofia da Psicologia. Lisboa: Edição Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação e Bolsas, 2007b.

 

Outros documentos em meio eletrónico

BEUYS, Joseph. Ja Ja Ja Ja Ja Ja, Nee Nee Nee Nee Nee. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=b0bukPRvxZQ&feature=related. Acesso em 10 de Agosto de 2014.

PAPE, Lygia, Projeto Lygia Pape. Disponível em: http://www.lygiapape.org.br/pt/. Acedido em 10 de Agosto de 2011.

 

[1] Durante a realização da minha Tese/Obra de Doutoramento senti necessidade de exteriorizar vocalmente pensamentos e um dia resolvi registar alguns momentos/pensamentos em áudio. Certa da impossibilidade de exteriorizar e verbalizar pensamentos na sua totalidade, considerei que seria um bom exercício. Ficaria o registo da expressão oral, de ritmos, ligações e velocidades da mente incompatíveis com a ação de escrever. Ainda hoje o faço como registo do tempo vivencial e que utilizo como instrumento/ferramenta de trabalho. Um exercício valioso que nunca pensei ser tão difícil nem tão enriquecedor. Em 2013 realizei a exposição individual intitulada Pensamentos Altos no CAESV, Sever de Vouga, Portugal. Poderá ter acesso a algumas reproduções fotográficas dos trabalhos expostos e de muitos outros em http://www.ruterosas.com.

[2] Sem me alongar no assunto refiro a proposição de Hegel - entre muito outros autores que escreveram sobre a linguagem -, pela qual o mundo simbólico só se constrói por meio da interação entre duas ou mais pessoas. Asrealidades fundam-se por meio das interações do indivíduo, ou naquilo que o Eu faz, sendo este regulado pelo que Nós construímos socialmente, talvez porque embora difícil o autoconhecimento é motivador, alimenta o conhecimento do Outro e dos outros, fundamental à nossa existência enquanto seres humanos e, consequentemente, artistas.

[3] Viver em sociedade implica uma consciência clara daquilo que nos envolve e que vai participando na construção do nosso Eu, ou o Self de Erving Goffman. Entre as Realidades e Artifícios, a Encenação e o Eu,importa realçar o afastamento que, por vezes, fazemos de nós próprios e que deriva num processo de estranhamento interior. A ideia de Identidade Deteriorada ou de Estigma que secontagiam como uma bactéria, um vírus, uma doença do ser humano, é manifestada pela incapacidade de interação com o Outro.

[4] Em L’Ordre du discours de Foucault, por exemplo, é realizada uma análise às especificidades e especialidades do discurso.

[5] Salienta-se, igualmente, A Confissão de Lúcio e o volume de poemas Dispersão, reveladores desse ato confessional na obra do escritor.

[6] Remete-se o leitor para o Sumário desta publicação organizada por Luciano Figueiredo onde se podem ler, em listagem, algumas formas de tratamento utilizadas nas cartas dos artistas.

[7] A instalação sonora, áudio com 64’53”, foi criada para a Staatliche Kunstakademie Dusseldorf, onde foi apresentada em 14/12/1968. Obra exposta no Museum für Moderne Kunst, Frankfurt am Main, DE.

[8] GUEDES, Ana, artista plástica, na troca de correspondência que realizamos por e-mail, 18 de Agosto de 2009.

[9] ALMEIDA, Efraín, artista plástico, em conversa registada em áudio, Julho de 2009.

[10] Não temos dúvidas quanto à importância da obra de Bachelard. Reconhecido no mundo das ciências humanas pela sua produção científica acerca das questões epistemológicas e metodológicas da filosofia contemporânea, foi um inconformado com o racionalismo – herdado dos séculos XVIII e XIX -, valorizando a imagem poética das coisas – o imaginativo a serviço do pensamento.

Muitas das suas obras sãoatravessadas por conceitos como: sonho, devaneio, poética, alquimia, tempo, imaginação. A riqueza de Bachelard consiste fundamentalmente em trazer para sua produção intelectual um duplo projeto: o apelidado de aspeto diurno – onde se inscrevem os conceitos mais ligados à epistemologia – e o aspeto noturno – onde aparece a complementaridade dos eixos da poesia (e do sonho – e posteriormente do devaneio) e da ciência. Ao aproximar estes dois aspetos Bachelard demonstra que a cisão entre razão e imaginação fica bem clara se utilizarmos a via racional mas que se usarmos a via onírica, a razão e a imaginação articulam-se, interpenetram-se, são complementares.

[11] Quantos autores refletiram sobre a Memória? Não será simples de elencar. De Platão, Aristóteles, Plotino, S. Agostinho, Leibniz, Locke, Descartes, Hursserl, Hobbes, Wolff, Baumgarten, Kant, Hegel, Spinoza, Hume, Nietzshe, a Freud, ou Bergson, estamos conscientes da sua presença na nossa memória. Os textos que escreveram demonstram maior ou menor aproximação entre si e as diferentes épocas e contextos em que viveram.

 

In VI Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica, Modos de Viver, Narrar e Guardar. Rio de Janeiro. BIOgraph

ISSN 2178-60676